Em 1934, ao final de uma longa e proficiente trajetória existencial, Sigmund Freud confessa inusitadamente ao escritor italiano Giiovanni Papini: “Desde a minha infância, o meu herói secreto é Goethe (...) fui capaz de vencer meu destino de um modo indireto e realizei o meu sonho: permanecer um homem de letras sob as aparências de um médico”. A hipótese da existência de um substrato comum entre as características heterogêneas desses dois campos, psicanálise e literatura, alcança maior evidência a partir de uma inequívoca alusão de Freud à peça Hamlet, de Shakespeare, contida em sua análise da novela Gradiva, de Jensen: “Os poetas são aliados valiosíssimos [do psicanalista] e seu testemunho deve ser levado em alta conta, pois conhecem muitas coisas entre o céu e a terra, cuja existência nem sonha a nossa sabedoria acadêmica. No conhecimento da alma estão a nossa frente, homens comuns, pois se nutrem em fontes, que ainda não tornamos acessíveis à ciência”.
O pensamento freudiano em sua superfície, se amparava no tradicionalismo da formação acadêmica, visando lidar com a investigação dos processos psíquicos, mas se rebelava na mais aguçada perspicácia, quando se submetia à disciplina da letra, em sua materialidade significante. Desbravando a linguagem do inconsciente como uma espécie de arqueólogo da palavra, de cientista do sonho, Freud empreendia sua descida às camadas mais profundas e tantas vezes infernais do indizível, deparando-se com possibilidades ambivalentes, paradoxais, dentro de uma mesma identidade do Ser, como quando vivenciou a experiência do duplo, do estranho, que ao mesmo tempo parecia tão assombrosamente familiar; percepção esta já anunciada por tantos artistas da literatura, dos quais a obra, conhecia intimamente. Pela figura do escritor-poeta, que Freud passaria com o tempo, a ver como o duplo especular do psicanalista, fora capaz de observar o fato de que o homem da ciência e o poeta, ao contrário de vivenciarem algum tipo de oposição constitucional, coexistem, à semelhança de seu conceito maior, o inconsciente, lugar onde a negação é insustentável e os opostos não tendem a se anular reciprocamente; ou como o escritor Arthur Schnitzler, referindo-se a uma carta de Freud, durante entrevista concedida em 1927, viria a afirmar que “Na literatura, percorro a mesma estrada sobre a qual Freud avança com uma temeridade surpreendente na ciência. Ambos, o poeta e o psicanalista, olhamos através da janela da alma”.
A razão de me debruçar sobre esta breve consideração introdutória, é a de ressaltar a impecável trajetória do Projeto Interlocuções, reassumindo o compromisso freudiano de aproximar cada vez mais os enigmas da letra poética, do universo da leitura psicanalítica. Ao longo de seus oito anos de valiosas atividades culturais, no acolhedor espaço da Sala de Leitura da Cidade das Artes Bibi Ferreira, a psicanalista Gilda Pitombo, coordenadora do projeto, promoveu este fértil diálogo entre as mais diversas linguagens da comunicação estética, submetendo-as sempre à escuta tão atenta e à palavra tão perceptiva do saber psicanalítico; mediando encontros onde evidenciamos a mais democrática troca de ideias e vivências entre o público participante, oriundo de diferentes orientações e formações profissionais e os artistas convidados à exposição de suas temáticas, invariavelmente conectadas com as angústias e esperanças mais latentes de nosso espírito de época. Por isso, quero deixar em nome do Divã Cultural, que durante estes anos também se nutriu e cresceu, pela instigante revelação de novos saberes, através do Projeto Interlocuções, meu agradecimento por continuar redesenhando com vocês, múltiplos caminhos para uma só jornada, a jornada do conhecimento.
Paulo Rogério Ferraz
Divã Cultural
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